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Archive for June, 2002

Cenas da vida

Comecei a pensar sobre as cenas da vida faz tempo, mas um episódio me fez voltar os pensamentos e resolvi falar sobre eles. Primeiro, uma pequena narração do episódio:

Lembro do dia em que cheguei em casa empolgado. Tinha nas mãos uma bolacha deliciosa, um filme show, um refrigerante e dois salgadinhos que sou fã. Sentei-me na mesa e comecei a comer a bolacha e beber o refrigerante, enquanto meus olhos não desprendiam da T.V., que exibia trailers de filme. “Pô, que louco! Comer coisas gostosas assistindo filme é muito bom”. Quando a bolacha acabou, fui ao sofá com os dois salgadinhos e o refrigerante em mãos. Ajeitei-me e o controle remoto passou depressa pelos outros trailers, queria começar a ver logo o mais importante. O filme estava para começar quando fui abrir o salgadinho… Parei na última hora, revoltado! “Seu burrão, comprou o salgadinho errado! Esse você nem come!” Que anti-clímax! Caramba, que anti-clímax total! Tive que sair de casa para trocar o tal salgadinho e durante o caminho pensei: “qual a importância desta cena para minha vida?”… “Qual a importância daquele momento que fiquei vendo trailers?”…

Uma série de novas perguntas sobre a importância das cenas da minha vida começaram a me cercar… Fui obrigado a pensar no assunto e aqui tento resumir o que passou pela minha cabeça…

Eu vejo minha vida como um conjunto de cenas em seqüência… às vezes tenho até trilha sonora. Ir ao banheiro é uma cena, ir ao quarto é uma cena, conversar com amigos é uma cena, passar mal é uma cena, ficar pensando é uma cena (estilo Kurosawa, mas é uma cena…), dormir é uma cena, escrever é uma cena, etc..
Sempre tive para mim que o tempo e o espaço são cineastas parcimoniosos e que só colocam na minha frente cenas importantes para o filme da minha vida. Cada dia fica mais claro que estou errado… O tempo e o espaço são diretores de estilo psicodélico e filmam cenas com sentidos duvidosos, que quebram as cenas inteligíveis.

Muito do que acontece são apenas montes de cenas que poderiam ser jogadas fora. O difícil é um ator estrelinha como eu aceitar que minha habilidade seja desperdiçada em qualquer cena. Seria bem melhor para minha carreira que nenhum momento do rolo de filme comprado para mim fosse perdido, mas isto é pedir demais. Tenho que me adaptar aos diretores do filme e ensaiar cenas ao invés de gravá-las todas direto. Fica então uma pergunta: quando e com que material a versão final do longa metragem de minha vida será publicado?

Não há como saber se será publicado.

Fico preocupado com a existência de sentido em cada um dos meus atos, porque sinto que a quantidade de rolos é pequena e que o material possa acabar a qualquer momento. Queria um gozo eterno, uma cena filmada por anos sem troca, uma seqüência fluida ininterrupta que só terminaria com o fim dos rolos de filme… Mas os diretores, o tempo e o espaço, não concordaram com a minha idéia e preferiram comprar vários pequenos rolos e toda hora sou obrigado a esperar que os câmeras os troquem.

Outra coisa que está fora de discussão com os diretores são os coadjuvantes do meu filme. Eles os põem na minha frente em tempo real e sou obrigado a usar toda a minha habilidade para lidar com eles. Não há camarins para uma conversa informal. Com o tempo consigo eliminar do longa as pessoas com quem não lido bem, mas muitos atores que não gosto ainda poluem cenas que poderiam ser melhores com sua ausência. Tenho o sonho de encontrar a atriz com quem poderei deixar de interpretar mesmo durante as gravações ao vivo. Tenho certeza que este encontro os diretores estão deixando para o momento certo. É o que espero.

Na verdade, nada posso afirmar sobre os caminhos que os diretores e o roteiro me reservam. Essa idéia de fazer um filme sem roteiro definido e com total improvisação transforma cada nova cena em uma surpresa. É isso que me faz querer continuar gravando. Sempre tenho esperança que a história vai melhorar na cena seguinte.

Certo é que os rolos estão sendo consumidos e que cedo ou tarde a cena derradeira ocorrerá. Enquanto não acontece, continuo atuando e aceitando o fato de que não sou um ator tão importante assim e que devo me submeter aos caprichos dos meus diretores, o tempo e o espaço. Aproveitando as cenas aparentemente sem sentido para pensar sobre a evolução do filme resolvo meu problema de falta de tempo. No fundo, sei que tenho total liberdade para atuar e que o tempo e o espaço só me provêm o cenário.

Categories: Cinema, Crônica, Diarices