Archive

Archive for May, 2002

Era-lhe difícil

Era-lhe difícil

Era-lhe difícil. Tudo quanto se tinha para fazer, era-lhe difícil. Vivia no horror da insatisfação. Quando experimentava a felicidade, era em momentos curtos, em prazeres velados; uma felicidade de mentira, que servia apenas para lograr uma voz quase inaudível, que exigia alegria a plenos pulmões, mesmo abafada dentro de uma redoma de vidro e exibida como atração circense. Era-lhe difícil se entregar plenamente, deixar-se levar despreocupado, da maneira que exige o verdadeiro gozo. Não. Estava sempre pensando no momento seguinte e no momento anterior, procurando um significado, uma explicação que elucidasse porque o presente estava ocorrendo. E o presente, este ele não abria; mantinha a caixa fechada e o papel que a embrulhava, intacto; o pacote ficava escondido embaixo da cama, guardado por ressalvas de todos os tipos. Tinha medo, porém, que o pacote lhe fosse roubado e que outro gozasse do prazer que a ele estava destinado. Somente o medo, e a raiva que dele advinha, eram capazes de incitá-lo ao presente, à caixa que esperava ser aberta. Mas não: era-lhe difícil… mesmo com a raiva a lhe inflamar os ânimos e o medo a lhe pedir extinção, não abria a caixa; ao contrário, escondia-a com ainda mais cuidado, com esmero até, transformando o hediondo ato de se enganar e não viver o gozo em uma arte refinada. Ia mais longe: não só em arte, mas em ciência se transformava em suas mãos doentias o trabalho de adiar e esconder o prazer; transformava o medo em técnica. Nunca estava em paz, apesar dos esforços, porque por mais que se esforçasse por manter a caixa longe do mundo, sempre se lembrava dela. A voz enclausurada na redoma era vigorosa e clamava incessantemente e com esperança, como se estivesse alheia à sua difícil situação e à alta impossibilidade de ser ouvida. Gritava, gritava admiravelmente e conseguia irritar, mostrava toda a decadência daquele esquema, daquela arte que o medo inspirava. Essa tentativa de liberdade, infelizmente, perdia as batalhas, uma após a outra, miseravelmente.

Categories: Prosa

O sonho

A cama estava quente, boiando em uma grande panela com água fervendo. A fumaça levantada pelo fervor não permitia que eu visse direito o que estava ao meu redor, mas percebi que móveis da minha casa estavam também boiando. Agarrei o violão que estava sobre o móvel que costumava suportar o computador. Com o violão, remei até a borda da panela, que devia ter 3m de raio. O violão se estragou no processo, deixando-me chateado… Chorei ao ver que o violão havia ajudado a me salvar, mas estava destruído. Um sentimento de saudade me invadiu e por alguns momentos sonhei que estava em um enterro. Uma grande lápide dizia: “Aqui jaz o violão. Muitos desejaram tocá-lo, poucos realmente o fizeram, mas o que importa é o amor”. Fiquei comovido, mas o vapor quente me incomodava demais e fez-me voltar ao meu problema com a panela. Comecei a pensar em como sair da panela sem tocar suas beiradas, que deviam estar fritando. Sorte a água estar alta o suficiente para que eu pudesse saltar por cima da borda… mas seria uma longa queda. Lembrei que estava sentado sobre o colchão. Peguei o colchão e joguei por sobre a panela, ouvindo seu toque no chão. Pulei então, mas não por estar confiante no sucesso da empreitada, mas pelo desespero que o calor me causava. Antes de saltar, pude ver ainda a mesa da sala e desejei nunca ter pisado em solo tão perigoso. A queda me pareceu bastante longa, mas percebi que caía em direção ao colchão. Durante a queda pude ouvir muitas vozes. Elas discutiam em tom ameaçador. Não conseguiam compreender o que realmente acontecia e não se entendiam. Era uma briga inútil, de egos, mas com fundamentos profundos demais para não ser levada a sério. Gritei da minha solitária queda, tentando apaziguar aquelas vozes que eu reconhecia de algum lugar, mas foi inútil. Não havia qualquer atenção aos meus apelos. Tive que cair solitariamente, tendo consciência de que eu entendia o que realmente acontecia, mas que não podia ser entendido ou escutado por quem discutia. Muita dor causou-me esse isolamento. A queda continuou. Forte impacto, sem feridas. Levantei-me tonto, desacreditando o que havia acontecido: a panela sumira e ao meu redor iniciavam-se vários caminhos, em todas as direções e sentidos. Todos me pareciam belos e dignos dos meus passos. Boas sensações todos me causavam e um grande pedaço de cada um deles podia ser visto de onde eu estava. É como se eu seguisse um pouco de cada caminho, mas não trilhasse realmente nenhum. A solidão novamente veio com força. Então, as pessoas vieram. Cada uma proveniente de um caminho. Pensei que meu problema de solidão havia acabado, mas as pessoas não podiam me ver. Viam apenas a si mesmas, eu era como um fantasma. Todas se encontraram no fim, ou começo, dos caminhos. Todas tinham um sorriso vitorioso, juvenil e corajoso. Conversavam sobre o fato de todos os caminhos serem circulares e começarem e terminarem no mesmo lugar. Entendi que as pessoas que estavam ali já se conheciam e que haviam se separado no começo de suas vidas. As palavras vida e morte foram pronunciadas, mas não entendi o contexto em que haviam sido. Cada caminho, pela descrição dos caminhantes, era completamente diferente do outro, ainda assim tinham a mesma origem e o mesmo fim, e eram formados da mesma matéria ininteligível. Abraçaram-se todos, reconhecendo sua igualdade… e sumiram. Muito pensei em suas palavras, mas não conseguia entender seus significados. Reapareceram novamente, as mesmas pessoas. Estavam diferentes, roupas diferentes, olhares diferentes e mais jovens do que me pareceram antes. Não pareciam amigos, olhavam-se com ódio e medo. Escolheram caminhos diversos e cada um tentava convencer o outro que o caminho que havia escolhido era melhor. Lutaram alguns, outros choraram, ninguém se ouvia, ninguém se preocupava com o outro. Seguiram caminhos diferentes. Pude ver, porém, que estavam em contato. A matéria que formava os caminhos deixava todos em permanente contato, mesmo o contato não sendo percebido. Fiquei muito intrigado ao perceber isso. Novamente se encontraram no ponto onde eu estava e novamente não podiam se ver. Repetiram as palavras amigáveis e seus rostos tinham a mesma coragem que vi neles da primeira vez. Senti-me só e tolo, necessitando escolher um dos incontáveis caminhos que se abriam diante de mim. Refleti sobre tudo que havia acabado de ver, mas conclusão nenhuma me iluminou. Não estava pronto para seguir qualquer caminho. Chorei profundamente, em posição fetal. Quando novamente me pus sob meu controle, o cenário havia mais uma vez mudado. Uma grande mesa com o símbolo do Yin-Yang estava à minha frente. Sentado em duas cadeiras, dois de mim sorriam. Uma terceira cadeira estava vaga, formando, se linhas fossem traçadas, um triângulo eqüilátero perfeito ao redor da mesa. Sentei-me e olhei nos meus quatro outros olhos e meus quatro outros olhos olharam para mim. Estava em controle dos três de mim, mas cada um tinha pensamentos diversos. Compreendi que a mesa não tinha paralelo com o que acontecia, por enquanto. Começamos uma conversa sobre vida e morte. Um deles defendia que a morte é um passo da vida e que é o final dela, o fim de toda a existência e que esta não era nada mais do que material. Outro, que a morte era só mais um nascimento e que o ciclo vida e morte se repetiria infinitamente em cada ser, até que o entendimento fosse encontrado. O terceiro defendia que tudo era um teste de um ser superior e que a morte era o fim do teste. A discussão era bastante rápida e apaixonada e não apresentou vencedores. Uma conclusão foi tirada, porém, de todos os fatos: A verdade é a da crença pessoal, mesmo sendo uma crença errada. A crença que determina a forma de vida de cada um e, por isso, nada mais importava. As diferenças existem e há de se conviver com elas… Infelizmente, nenhuma crença foi por mim escolhida. Vi-me novamente sozinho, meus iguais haviam partido. Eu estava sobre a mesa Yin-Yang e ela girava alucinadamente, fazendo as duas cores se misturarem. Resumia todo o universo, era a dualidade única. Tudo ali se concentrava, todas as imagens e pensamentos, matéria e misticismo, tudo ali se encerrava e tudo era uma coisa só, de cor cinza. Havia preto e havia branco, havia ódio e havia amor, guerra e paz, matéria e espírito, forte e fraco, alto e baixo, homem e animal, ser vivo e ser inanimado; mas tudo era uma coisa só e se resumia em cinza! Fui tomado pelo desespero e desejei não mais ver tudo aquilo. Tudo sumiu. Senti-me sozinho mais uma vez. Uma mulher nua surgiu da escuridão e se sentou na minha frente. Ela apresentava no rosto doçura e pesadelo, amor e crueldade, sorria ao mesmo tempo que fazia ameaças. Era Eva? Falou-me por longo tempo, mas nenhuma palavra pude entender. Era um completo mistério. Ficou tanto tempo na minha frente, que eventualmente nos tocamos e nos amamos, mas nunca era permanente. Após brigas e reconciliações, momentos de desespero e amor, ela me disse que eu devia falar. Falei-lhe sobre o amor que sentia pelas mulheres, sobre minha incapacidade de entendê-las, sobre como precisava de uma delas ao meu lado. Falei que somente no amor via cura para a loucura que vinha me dominando, falei que era somente através de seu toque que eu estava em paz. Disse-lhe que, ainda assim, o toque não era suficiente, que eu precisava dividir, que eu queria confiar e que a vida era dura sem alguém para segurar minha mão. Ela sorriu, um sorriso de pena. Ela sentiu pena de minha fragilidade e me acusou de tolo, de fraco, disse que eu não daria um bom homem. Tomei-a nos braços e a amei mais violentamente do que nunca, mostrando que havia mais em mim do que a imagem mostrava. Fui tão firme, tão decidido, que ela se arrependeu de ter sentido pena e me amou. Mas em outro momento, estava novamente fraco. Contei-a da minha inconstância, das faces que em mim não se calavam e me tomavam aleatoriamente, fazendo-me parecer um homem diferente a cada dia. Olhou-me nos olhos uma vez mais e desapareceu. Sozinho fiquei. Sem crença definida, relativizando todos os atos de todos os homens, sendo mais compreensivo do que devia ser. Sozinho fiquei, sem crenças e sem caminhos, julgando tudo justo, tudo certo. Sozinho. Acordei em minha cama novamente. Cama firme, verdadeira. Até que dormi e sonhei de novo… outro sonho, que será contado outro dia.

Categories: Prosa